domingo, 20 de setembro de 2009

Registos


Aperta o punho com quanta força tem; lá dentro guarda ciosamente o sorriso que teima em querer fugir-lhe. Antípoda de outro sorriso, com quem já fez as delícias de um coração pungente, paleta de sensações que lhe percorrem os sentidos a cada lembrança retirada do baú dos sonhos idos.
Um sorriso de paz num coração em guerra, que crê cegos os que o observam e oculta o inconfessável.

Mas o silêncio, seu pior delator, faz deslizar sobre ele o manto da realidade, transforma a ilusão de uma primavera perene no horizonte cinza de um dia chuvoso; abre um fosso entre uma felicidade e outra. E, entre um olhar perdido além fronteiras e um sorriso que acaba por lhe desmaiar nos lábios, ficam apenas os registos para a posteridade.

sábado, 19 de setembro de 2009

Ainda... O Livro do Desassossego


"Para mim, escrever é desprezar-me; mas não posso deixar de escrever. Escrever é como a droga que repugno e tomo, o vício que desprezo e em que vivo. Há venenos necessários, e há-os subtilíssimos, compostos de ingredientes da alma, ervas colhidas nos recantos das ruínas dos sonhos..."

Fernando Pessoa

domingo, 13 de setembro de 2009

...


"Como todo o indivíduo de grande mobilidade mental, tenho um amor orgânico e fatal à fixação. Abomino a vida nova e o lugar desconhecido.
(...)
Ah, viagem os que não existem! Para quem não é nada, como um rio, o correr deve ser vida.
(...)
Que me pode dar a China que a minha alma me não tenha já dado? E, se a minha alma mo não pode dar, como mo dará a China, se é com a minha alma que verei a China, se a vir? Poderei ir buscar riqueza ao Oriente, mas não riqueza de alma, porque a riqueza de minha alma sou eu, e eu estou onde estou, sem Oriente ou com ele.
Compreendo que viaje quem é incapaz de sentir."

Fernando Pessoa, in O Livro do Desassossego

domingo, 6 de setembro de 2009

...


"O sonhador não é superior ao homem activo porque o sonho seja superior à realidade. A superioridade do sonhador consiste em que sonhar é muito mais prático que viver, e em que o sonhador extrai da vida um prazer muito mais vasto e muito mais variado do que o homem de acção. Em melhores e mais directas palavras, o sonhador é que é o homem de acção."

Fernando Pessoa, in O Livro do Desassossego

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Axioma


"A felicidade não se deixa vender por dinheiro, não se permite seduzir pela fama e nem aceita ser subjugada pelo poder.
Se quisermos encontrá-la, precisamos de procurá-la nos recônditos anónimos do espírito humano, nas avenidas ocultas da emoção."

Augusto Cury

domingo, 14 de junho de 2009

*(Sem título)


Chegaste como a aurora, pela manhã,
Pousaste levemente, de mansinho,
Com a leveza e doçura que te caracterizam.
Não pediste licença, entraste,
Qual alcova nupcial pronta a receber-te,
E de forma indelével deixaste a tua marca.
Com a mesma serenidade com que apareceste
Foste-te esgueirando paulatinamente,
Sem te aperceberes que os campos
Outrora áridos e agrestes,
Eram agora planícies ardentes, sedentas de ternura,
Espezinhadas por um sentimento amordaçado.
O sol que a aurora prometera não chegou,
Em seu lugar veio a tempestade angustiante,
A ansiedade, o vazio do afastamento,
A fazerem jus ao Dezembro frio e chuvoso
Que te trouxe de outra estação, porventura mais bonita!

*Escrito em 29/07/2001 (continua actual)

domingo, 7 de junho de 2009

Ausência versus presença


[Quero é estar contigo no nada de tudo o que acontecer. Saturar-me da tua presença. E ver-te. E ver-te. Que importa o que "acontecer"?]

Vergílio Ferreira, in Em Nome da Terra



domingo, 31 de maio de 2009

Constatação


"Muito vence quem se vence
Muito diz quem não diz tudo,
Porque a um discreto pertence
A tempo fazer-se mudo."

Copla do Infante D. Luiz, cit. Augusto Gil, in Luar de Janeiro

sábado, 14 de março de 2009

Mãe

Mãe, gostaste das flores que te levei?
Não disseste nada!?... :(
Eram as tuas flores, as tuas companheiras inseparáveis de toda a tua vida; aquelas que, deixavas-nos adivinhar, eram indispensáveis ao teu equilíbrio emocional.
Sabes, hoje, esta dor começou a abrandar. Eu não conseguia perceber como é que tinhas sido capaz de te deixar ir, assim, sabendo que nos deixarias sós. Nós, por quem toda a vida foste uma lutadora; assim, de um momento para o outro, foste-te embora e deixaste-nos órfãos?
Hoje, quando insisti tanto para que viesses ver as tuas flores, quando chorei e implorei para que me ouvisses, é que percebi que as tuas forças não chegaram para te libertares de todo o peso que te puseram em cima;
Percebi que a tua vontade não relevou para este acto;
Percebi que se tivesses podido escolher nunca nos terias deixado;
Percebi que a nossa dor não foi causada por ti mas em razão de ti;
Percebi que, onde estiveres, continuas a ser aquele elemento agregador que nos fazia caminhar numa única direcção, a tua;
Percebi que, no dia em que nos deixaste, quando sentimos aquele desejo enorme de ficarmos juntos, em redor da mesma dor, tu continuavas connosco, continuavas a ser a célula que nos mantém unidos e presentes, que nos transmite luz e anula a escuridão daquele dia terrível.
Percebi que, afinal, tu, Mãe, continuarás connosco para todo o sempre!

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

O Fogo e as Cinzas

de Manuel da Fonseca

Li atentamente “O fogo e as cinzas”, um conto que, do princípio ao fim, se movimenta continuamente entre o presente e o passado, numa dança inquieta e angustiante, em que o seu personagem principal, o Sr. Portela, se debate entre um amor não vivido e uma honra que não foi suficiente para evitar uma velhice solitária.

O texto é uma narração, intercalada por pequenos diálogos em discurso directo, todo ele em linguagem familiar, em que são relatadas emoções, sentimentos, angústias e mágoas com a força que lhes é conferida pelos expressivos vocábulos de que o Autor se serve.

O conto representa uma realidade repartida por várias décadas, cuja acção se desenrola numa vila pacata, a partir do imaginário do personagem, saudoso, atormentado por recordações que lhe ferem a alma, pouco assertivo em relação a um passado distante, e ufano dos feitos dos seus próximos, que se serve de antíteses para lhes dar maior relevo:
“Eu odiava e adorava o fogo, tal como o Mestre Poupa". Ainda: “- Só queria que vocês assistissem ao incêndio da Rua da Madalena, lá em Lisboa. Isso é que foi um fogo bom! – Recordava ele, animado e feliz. "– Morreram dezenas de pessoas.”

Pela mão do narrador entramos na vida de outros dois personagens, Mestre Poupa bombeiro, já falecido, e André Juliano a cumprir pena de prisão. Não obstante, a cada um seu drama de vida. Mestre Poupa bombeiro, inconsolável com o fim dos “incêndios grandes e devastadores”, e André Juliano, sorumbático, sob a autoridade de seu pai, apesar dos seus cinquenta anos, de quem recebia uns miseráveis “vinte e cinco tostões”.

O Sr. Portela debate-se entre a realidade e as recordações. Ora apressa-se para não se atrasar para o cafezinho do costume com os seus dois amigos, ora é sacudido pela dura realidade de que da “trindade falhada” já só resta ele, “velho e casmurro”. Perseguido pela tormentosa recordação da sua noiva, Antoninha das Dores, no meio da rua, deitada nos braços do grandalhão Chico Biló, em fralda de camisa, de coxas, ventre e seio ao léu, após ter sido salva de um incêndio, consome o tempo de que dispõe, distribuindo por ele, sucessivamente e com parcimónia, o pouco que lhe sobra para fazer. Adoça o café com pitadas, colher a colher; pachorrentamente prepara um cigarro, a ver se consegue trocar as voltas ao tempo e passar-lhe à frente.

No texto são mais frequentes as evocações do passado do que os relatos do presente. São evocações tão nítidas que permitem ao leitor sentir a vila morna, pacífica, pouco povoada, ser acordada, primeiro, com as travessuras dos três pequenos estroinas, estudantes temidos, a quem os castigos não impediram de partir as carteiras da escola, o quadro grande, e rasgarem-se uns aos outros, ao que os pais concluíram que de cultura o que tinham já lhes chegava; depois, enquanto jovens, “O largo, e mais tarde os bailes desordeiros do campo e a noite sem lei das ruas da vila” passaram a ser o seu mundo.

Pela narração do Autor, somos levados a um café, pouco movimentado, algo insalubre, com mesas de tampo de mármore, sujo, distribuídas pelos cantos da sala, que é servida por uma montra donde se pode ver a rua até ao fim. Do tecto da sala pendem aquilo a que o Autor chama os {nojentos “cemitérios”}, que atraem as moscas. Vê-se um empregado de aspecto pouco cuidado, mas afável. Percebe-se que, embora com pouco movimento, o café é frequentado sempre pelos mesmos clientes. “De soslaio, lanço uma mirada pelos grupos que falam de mesa para mesa.”

A mágoa que o Sr. Portela transporta consigo, é de tal forma nítida aos sentidos do leitor, que conseguimos ouvir acelerar-se-lhe o respirar quando olha através do vidro da montra e vê o André Juliano aproximar-se, e ver o corpo murchar-lhe quando “Aos poucos, a cabeça vai-me tombando entre os ombros vergados pela vida.”. Ainda, quando, indefeso, se rende às recordações, “Os meus olhos, nevoentos, voltam-se para o passado".

Do presente ressalta um elenco de adjectivos que fazem aumentar a angústia do personagem principal: “O espelho, em frente, mostra-me o meu carão esverdinhado de velho. (...) Poltrão. É isso: um cobarde. (...) vejo no espelho o meu carão de tal forma espantado que me parece ter acabado de beber veneno.”

Mas o passado grudou-se-lhe para sempre, e rendido às recordações que o atormentam, decide: “Não faz mal. Seja onde for, posso rever a minha desgraça. (...) bebo a minha xícara, faço um cigarro. Logo começo a apertar as mãos até os ossos estalarem. E Antoninha das Dores vem.”

Leiam Manuel da Fonseca e, tal como eu, ficarão rendidos ao seu estilo autêntico.

domingo, 4 de janeiro de 2009

Ausência


A solidão fria da ausência desfigura o nosso ser.
No rosto, estende-se a cambraia negra que cobre a destemperança da paixão e sufoca o último retalho de sorriso que escapou da partida;
dos olhos, ainda escorrem as últimas gotas da tempestade que começa a amainar;
dos cabelos, pendem finos cristais de indiferença, fronteira ténue entre a vontade de viver e o desejo de morrer;
das mãos, desliza a última nesga de esperança, resistente companheira do sonho que a alimentou;
ao coração, a fina geada torna-o hirto, sem vida;
a noite, dobrada sobre si mesma, a contorcer-se de dor, conduz-nos a um roseiral, onde as rosas cederam o lugar aos espinhos, até que a primavera regresse.
Mas a noite, que refina sentimentos e acentua a cor cinza da vida, dará lugar a outro dia, prenhe de uma nova esperança, que se prolongará para além dos limitados horizontes da nossa existência.