segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

O Fogo e as Cinzas

de Manuel da Fonseca

Li atentamente “O fogo e as cinzas”, um conto que, do princípio ao fim, se movimenta continuamente entre o presente e o passado, numa dança inquieta e angustiante, em que o seu personagem principal, o Sr. Portela, se debate entre um amor não vivido e uma honra que não foi suficiente para evitar uma velhice solitária.

O texto é uma narração, intercalada por pequenos diálogos em discurso directo, todo ele em linguagem familiar, em que são relatadas emoções, sentimentos, angústias e mágoas com a força que lhes é conferida pelos expressivos vocábulos de que o Autor se serve.

O conto representa uma realidade repartida por várias décadas, cuja acção se desenrola numa vila pacata, a partir do imaginário do personagem, saudoso, atormentado por recordações que lhe ferem a alma, pouco assertivo em relação a um passado distante, e ufano dos feitos dos seus próximos, que se serve de antíteses para lhes dar maior relevo:
“Eu odiava e adorava o fogo, tal como o Mestre Poupa". Ainda: “- Só queria que vocês assistissem ao incêndio da Rua da Madalena, lá em Lisboa. Isso é que foi um fogo bom! – Recordava ele, animado e feliz. "– Morreram dezenas de pessoas.”

Pela mão do narrador entramos na vida de outros dois personagens, Mestre Poupa bombeiro, já falecido, e André Juliano a cumprir pena de prisão. Não obstante, a cada um seu drama de vida. Mestre Poupa bombeiro, inconsolável com o fim dos “incêndios grandes e devastadores”, e André Juliano, sorumbático, sob a autoridade de seu pai, apesar dos seus cinquenta anos, de quem recebia uns miseráveis “vinte e cinco tostões”.

O Sr. Portela debate-se entre a realidade e as recordações. Ora apressa-se para não se atrasar para o cafezinho do costume com os seus dois amigos, ora é sacudido pela dura realidade de que da “trindade falhada” já só resta ele, “velho e casmurro”. Perseguido pela tormentosa recordação da sua noiva, Antoninha das Dores, no meio da rua, deitada nos braços do grandalhão Chico Biló, em fralda de camisa, de coxas, ventre e seio ao léu, após ter sido salva de um incêndio, consome o tempo de que dispõe, distribuindo por ele, sucessivamente e com parcimónia, o pouco que lhe sobra para fazer. Adoça o café com pitadas, colher a colher; pachorrentamente prepara um cigarro, a ver se consegue trocar as voltas ao tempo e passar-lhe à frente.

No texto são mais frequentes as evocações do passado do que os relatos do presente. São evocações tão nítidas que permitem ao leitor sentir a vila morna, pacífica, pouco povoada, ser acordada, primeiro, com as travessuras dos três pequenos estroinas, estudantes temidos, a quem os castigos não impediram de partir as carteiras da escola, o quadro grande, e rasgarem-se uns aos outros, ao que os pais concluíram que de cultura o que tinham já lhes chegava; depois, enquanto jovens, “O largo, e mais tarde os bailes desordeiros do campo e a noite sem lei das ruas da vila” passaram a ser o seu mundo.

Pela narração do Autor, somos levados a um café, pouco movimentado, algo insalubre, com mesas de tampo de mármore, sujo, distribuídas pelos cantos da sala, que é servida por uma montra donde se pode ver a rua até ao fim. Do tecto da sala pendem aquilo a que o Autor chama os {nojentos “cemitérios”}, que atraem as moscas. Vê-se um empregado de aspecto pouco cuidado, mas afável. Percebe-se que, embora com pouco movimento, o café é frequentado sempre pelos mesmos clientes. “De soslaio, lanço uma mirada pelos grupos que falam de mesa para mesa.”

A mágoa que o Sr. Portela transporta consigo, é de tal forma nítida aos sentidos do leitor, que conseguimos ouvir acelerar-se-lhe o respirar quando olha através do vidro da montra e vê o André Juliano aproximar-se, e ver o corpo murchar-lhe quando “Aos poucos, a cabeça vai-me tombando entre os ombros vergados pela vida.”. Ainda, quando, indefeso, se rende às recordações, “Os meus olhos, nevoentos, voltam-se para o passado".

Do presente ressalta um elenco de adjectivos que fazem aumentar a angústia do personagem principal: “O espelho, em frente, mostra-me o meu carão esverdinhado de velho. (...) Poltrão. É isso: um cobarde. (...) vejo no espelho o meu carão de tal forma espantado que me parece ter acabado de beber veneno.”

Mas o passado grudou-se-lhe para sempre, e rendido às recordações que o atormentam, decide: “Não faz mal. Seja onde for, posso rever a minha desgraça. (...) bebo a minha xícara, faço um cigarro. Logo começo a apertar as mãos até os ossos estalarem. E Antoninha das Dores vem.”

Leiam Manuel da Fonseca e, tal como eu, ficarão rendidos ao seu estilo autêntico.